Na última quinta-feira, 26/10, o STF decidiu pela constitucionalidade da execução extrajudicial dos contratos de mútuo pelo Sistema Financeiro Imobiliário, prevista na lei 9.514/97. Nada de novo ou que já não fosse esperado pelo ambiente jurídico. Foi o teor dos títulos das reportagens jornalísticas, contudo, que causou certo pânico para muitos mutuários, dentre eles, vários produtores rurais, que nos mandaram mensagens questionando o alcance dessa decisão.
Eis alguns dos títulos “alarmantes” das reportagens, para contextualizar a confusão:
“STF permite a bancos retomada de imóvel financiado sem pagamento” – Site Migalhas
“STF valida regra que permite a bancos retomar sem ação judicial imóveis de inadimplentes” – G1
“STF valida regra sobre banco leiloar imóvel com dívidas sem passar pelo Judiciário” – CNN Brasil
“STF decide que bancos podem leiloar imóvel sem ação judicial” – Poder 360
“STF julga validade da retomada extrajudicial de imóvel de devedor” – Agência Brasil EBC
“STF autoriza bancos a retomarem sem ação judicial imóveis de inadimplentes; entenda” – Terra
Na leitura das chamadas do artigo, a impressão que o leitor tem é que, a partir de agora, e por decisão do STF, os bancos poderão retomar os imóveis de devedores sem precisar se socorrer do judiciário, por simples ato administrativo. Porém, não é bem assim.
O intuito desse artigo é explicar os limites e o alcance da decisão do STF com foco na atividade agrária, ou seja, dentro do ambiente do agronegócio.
Contextualizando o caso
Em 1997 foi criado o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), com a finalidade de promover o financiamento imobiliário em geral. Como forma de fomentar a atividade, criou-se uma garantia chamada “alienação fiduciária de bem imóvel”, onde o devedor toma um empréstimo e transfere o imóvel para o banco (alienação), mas com uma cláusula de que, cumpridos todos os pagamentos, a venda será desfeita (fidúcia) e o imóvel voltará a ser do mutuário.
São os famosos “financiamentos imobiliários”, de bancos como a Caixa Econômica, por exemplo. É bem provável que o leitor, ou alguém de sua família, já tenha se socorrido de empréstimos desse tipo para a compra da casa própria, por exemplo. É exatamente disso que a lei 9.514/97 trata.
O problema é que essa lei de 1997 estabelecia que, vencida a dívida, o banco não precisaria ir ao judiciário, mas sim direto no cartório de registro de imóveis e notificar o devedor da inadimplência. Não paga a dívida, a propriedade era automaticamente consolidada em nome do Banco. É bem provável, também, que o leitor já tenha ouvido histórias ou exemplos dessa situação.
O que se discutiu no caso examinado pelo STF é justamente a CONSTITUCIONALIDADE desse procedimento extrajudicial, pois a tese levantada é de que a lei não poderia tirar essa questão do âmbito do judiciário.
Limites da decisão do STF
Conforme se lê da decisão que estabeleceu a repercussão geral do caso, a controvérsia em discussão dizia respeito somente à “constitucionalidade do procedimento de execução extrajudicial, previsto na Lei 9.514/1997, nos contratos de mútuo com alienação fiduciária do imóvel, pelo Sistema Financeiro Imobiliário – SFI”[1]
Ou seja, o que o STF julgou[2] foi apenas a constitucionalidade do procedimento nos contratos de FINANCIAMENTO IMOBILIÁRIO, ou seja, financiamentos que tem relação com a compra e venda ou reforma de bens imóveis, como casas, apartamentos, pontos comerciais.
Não tem nada a ver com financiamentos rurais, industriais ou comerciais. O âmbito da questão em discussão diz respeito tão somente aos contratos de financiamento IMOBILIÁRIO.
O que muda para o crédito rural?
Neste aspecto, a decisão da última quinta-feira do STF não muda nada para o produtor rural quando ele toma um crédito rural. Até porque a alienação fiduciária de bem imóvel não é uma forma de garantia admitida pela lei na concessão do crédito rural (MCR 3.1.4).[3]
As únicas garantias permitidas no crédito rural continuam sendo o penhor, a hipoteca e o aval. E, para fazer cumprir essas garantias, ainda é necessário a propositura de ação judicial.
Desta forma, no âmbito do crédito rural, os bancos ainda têm de se valer do judiciário para “tomar a terra” do devedor inadimplente, o que deverá ser feito respeitando todas as garantias legais e pertinentes ao caso.
E para outras dívidas, como em Cédula de Produto Rural (CPR) e instrumentos de confissão de dívida?
Fora do âmbito do crédito rural, existem operações no chamado “mercado livre”, onde os bancos, tradings, cooperativas ou revendas financiam o produtor e, por vezes, exigem a constituição de alienação fiduciária de bem imóvel como garantia.
É muito comum vermos esse tipo de garantia sendo utilizada em contratos de confissão de dívida, escrituras de abertura de crédito, ou Cédulas de Produto Rural (CPRs), principalmente nos últimos anos.
Nestes casos, a rigor, pela letra do contrato e da lei 9.514/97, vencida e não paga a dívida, o credor poderia se valer do procedimento extrajudicial para consolidar a propriedade em seu nome. Porém, entendemos que, nestes casos, há discussões jurídicas ainda pendentes e que necessitam de um debate mais amplo, posto que não contempladas pela decisão do STF.
Para esses casos que fogem do âmbito do sistema imobiliário, entendemos que o procedimento de consolidação extrajudicial é inconstitucional, pois, como dito na decisão do STF, a questão foi analisada apenas no âmbito imobiliário e tendo em vista a garantia de juros reduzidos para os programas sociais de incentivo à moradia.[4] O Dr. Lutero Pereira escreve sobre isso nas obras Financiamento Rural – volume IV e Agronegócio – questões jurídicas relevantes.
Este aspecto abarca, inclusive, a Cédula de Produto Rural (CPR), cuja recente alteração legislativa passou a prever a alienação fiduciária de bem imóvel como uma forma de garantia. Muito embora o art. 5º dessa lei agora permita a constituição dessa garantia, não foi criado um procedimento próprio para a consolidação[5].
Desta forma, e como o art. 5º da lei da CPR exige que seja observado o disposto nas normas que disciplinam cada uma das garantias, entende-se que somente na CPR que tenha por escopo o fomento do sistema imobiliário é que poderá ser executada extrajudicialmente a garantia fiduciária do bem imóvel.
Tobias Marini de Salles Luz – advogado na Lutero Pereira & Bornelli – advogados. Contato: (44) 9 9158-2437 (whatsapp) / tobias@direitorural.com.br / www.pbadv.com.br
[1] https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=313633243&ext=.pdf
[2] “É constitucional o procedimento da lei 9.514/97 para execução da cláusula de alienação fiduciária e garantia, haja vista compatibilidade com as garantias previstas na Constituição Federal.”
[3] MCR. 3.1.4 – Os títulos de crédito devem ser utilizados de acordo com a natureza das garantias, a saber:
- a) com garantia real:
I – penhor: CRP;
II – hipoteca: CRH;
III – penhor e hipoteca: CRPH;
- b) com ou sem garantia real ou fidejussória: CCB e contrato;
- c) sem garantia real: NCR.
[4] https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=313633243&ext=.pdf
[5] Art. 5º A CPR admite a constituição de quaisquer dos tipos de garantia previstos na legislação, devendo ser observado o disposto nas normas que as disciplinam, salvo na hipótese de conflito, quando prevalecerá esta Lei.
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