Ultimamente, muito se tem discutido sobre quem seria o titular do direito de ação para exigir o cumprimento/pagamento do contrato de seguro agrícola quando há a estipulação de beneficiário. Esta é uma questão interessante, pois a grande maioria das apólices indica um beneficiário, normalmente o financiador ou fomentador da atividade. Logo, trata-se de uma estipulação em favor de terceiros que visa, precipuamente, garantir o pagamento da dívida em caso de perda de safra.
As seguradoras têm alegado, em sua defesa, a ilegitimidade ativa do segurado, buscando, com isto, obviamente, escapar do cumprimento do contrato. Esta alegação, contudo, não resiste a um simples exame das disposições do Código Civil, nem se sustenta frente ao entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça.
A figura do beneficiário no Código Civil
O contrato de seguro é regulado pelo Código Civil, a partir do artigo 757. Este primeiro artigo já estabelece, de forma clara e direta, que o contrato de seguro visa “garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados”. É óbvio, portanto, que é da natureza do contrato de seguro garantir o interesse legítimo do segurado. Ele é o contratante e, por lógica, é também o legítimo interessado no cumprimento do contrato.
Se o segurado estipulou como beneficiário um terceiro, esta estipulação em favor de terceiro (para garantir uma dívida, por exemplo) não altera, e nem poderia, a legitimidade do segurado como o primeiro e maior interessado no cumprimento do contrato de seguro, mesmo que para pagamento a um terceiro, para quitar uma eventual dívida.
A própria lógica negocial milita em favor desta conclusão, pois o segurado é o contratante e pagador do prêmio, somente o segurado tem o direito de comunicar o sinistro e somente o segurado pode participar do processo de regulação do sinistro pois o terceiro beneficiário tem apenas uma expectativa de direito, enquanto o direito de ver cumprido o contrato de seguro pertence ao próprio segurado, ainda que para pagamento a outrem.
Avançando mais no debate, o Código Civil estabelece, no artigo 436, que “o que estipula em favor de terceiro pode exigir o cumprimento da obrigação”. No contrato de seguro, o beneficiário é, por óbvio, um terceiro em favor de quem se estipulou. Não é parte, não é contratante, é apenas e tão somente o beneficiário de eventual indenização.
Assim, não há dúvidas, no plano do direito material, que o titular do direito é o contratante (segurado), não o beneficiário. E se o segurado é o legitimo titular do direito material, é dele também a titularidade processual para exigir o cumprimento do direito material.
Prosseguindo nesta questão, o parágrafo único do artigo 436 do Código Civil, estabelece que “ao terceiro, em favor de quem se estipulou a obrigação, também é permitido exigí-la, ficando, todavia, sujeito às condições e normas do contrato, se a ele anuir, e o estipulante não o inovar nos termos do art. 438.”
Não há dúvidas. A norma civil é clara, se o terceiro “também” pode exigir o cumprimento do contrato é porque o primeiro e principal legitimado é o segurado. O beneficiário “também” pode, mas não é o principal e nem único que pode. Haveria, neste caso, uma legitimidade subsidiária em favor do terceiro beneficiário, o que em nada altera ou exclui a legitimidade do segurado contratante.
E para que não haja nenhuma dúvida o legislador civil estabeleceu, ainda, no artigo 437, que “Se ao terceiro, em favor de quem se fez o contrato, se deixar o direito de reclamar-se a execução, não poderá o estipulante exonerar o devedor”. Ou seja, a seguradora pode, inclusive, pagar diretamente ao segurado e ser por ele exonerada, mesmo que haja beneficiário, exceto se houver, no contrato, uma estipulação de que somente o beneficiário pode reclamar a execução do contrato.
Sob a ótica legal, portanto, a regra é a legitimidade exclusiva do segurado (art. 436 do CC), mas o beneficiário também pode exigir, subsidiariamente, o cumprimento do contrato. Isto posto, somente quando expressamente inserido no contrato que o direito de reclamar o seu cumprimento está sendo transferido ao beneficiário é que se poderá falar em ilegitimidade ativa do segurado.
A posição jurisprudencial sobre o beneficiário do contrato de seguro rural
Por fim, voltando agora para a interpretação da norma civil, o posicionamento do e. Superior Tribunal de Justiça é pacífico no sentido de que “A instituição de beneficiário distinto do segurado no contrato não lhe retira legitimidade para pugnar pelo pagamento da indenização pela seguradora.” (RESP 594.953-PR, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha).
E o e. Min., no voto, esclarece: “Ora, ainda que o benefício pleiteado tenha como destinatário terceira pessoa, é nítido o interesse do segurado no adimplemento da obrigação segurada, seja para satisfazer seu débito junto ao alienante, seja para apurar eventual saldo remanescente. Dessa forma, o segurado, ainda que instituído terceiro beneficiário, possui legitimidade para pugnar pelo pagamento da cobertura à beneficiária.”
Conclusão
Não há dúvidas, portanto, que, no contrato de seguro rural, inclusive o seguro agrícola de safra, a indicação do beneficiário não altera a legitimidade ativa, tanto do direito material, como do direito processual, de exigir o cumprimento do contrato, exceto se houver cláusula expressa transferindo este direito ao beneficiário (art. 437 do CC).
Wagner Pereira Bornelli – Advogado especializado em direito do agronegócio e empresarial em Maringá (PR). Contato: www.pbadv.com.br / wagner@pbadv.com.br
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