A recuperação judicial tem ganhado destaque no meio rural como uma possível solução para produtores endividados. É comum ouvir que ela vai “parar tudo” e dar tempo para reorganizar as contas. O problema é que isso é apenas parte da história.
A realidade é que poucos conhecem os desafios e armadilhas desse processo, que pode, na prática, prejudicar ainda mais o produtor rural – principalmente quando adotado de forma precipitada ou com base em fórmulas padronizadas, que ignoram as especificidades de cada caso.
Neste artigo, esclarecemos pontos que nem sempre são discutidos sobre a recuperação judicial, seus custos, riscos e alternativas mais eficazes.
O que é a Recuperação Judicial?
De forma simplificada, a recuperação judicial é um procedimento que permite ao produtor rural, através do Judiciário, suspender temporariamente as cobranças de dívidas e propor um plano de pagamento aos credores.
Neste procedimento, o devedor informará ao juiz todos os credores que possui e demonstrará que não tem condições de liquidar todas as obrigações em seus vencimentos, ao mesmo tempo em que apresentará a viabilidade da empresa e a possibilidade de pagamento da dívida em prazo e condições que lhe permitam continuar operando.
Após o deferimento do pedido, é nomeado um administrador judicial para acompanhar o caso, e o devedor deve apresentar uma proposta de quitação das dívidas. Essa proposta precisa ser aprovada por uma assembleia de credores, que aceitará ou não o plano de recuperação por maioria de votos em todas as categorias de credores (trabalhistas, com garantias reais, quirografários etc.).
Aqui já vai o primeiro alerta: se sua dívida está nas mãos de poucos credores, ou se há poucos credores em determinada categoria, será difícil aprovar o plano. Afinal, obter o voto favorável da maioria dentre 4 credores pode exigir 3 votos. Neste caso, basta a negativa de dois deles para inviabilizar toda a recuperação judicial, conduzindo o produtor à falência.
Se o plano for rejeitado ou descumprido, o resultado é a falência, com a expropriação de todos os bens para o pagamento das dívidas.
Dito isso, vamos abordar a seguir alguns pontos que talvez não te contaram sobre a recuperação judicial no agronegócio:
A recuperação judicial não é um “salvador da pátria”
Apesar da aparente vantagem de “ganhar tempo”, a recuperação judicial é uma medida extrema, muitas vezes inadequada para produtores com dívidas concentradas em poucos credores ou com garantias especiais.
A verdade é que poucos conhecem os riscos e as armadilhas dessa medida, que pode agravar ainda mais a situação financeira do produtor rural, principalmente se realizada de maneira precipitada ou através de “fórmulas genéricas” que serviriam para qualquer produtor.
Dívidas que não pode ser incluídas na RJ
Nem todas as dívidas podem ser incluídas na RJ. Pelo contrário, a tendência do judiciário hoje tem sido em restringir as espécies de dívidas que podem ser incluídas em RJ. Assim, diversas modalidades de crédito e de garantia, muito comuns na atividade rural, não podem ser incluídos na recuperação judicial, tais como:
a) Atos cooperativos:
Os contratos e obrigações decorrentes de atos cooperativos, isto é, obrigações assumidas entre as cooperativas e seus cooperados não se sujeitam à recuperação judicial.
Como grande parte do endividamento rural atualmente está nas mãos de Cooperativas Agrícolas, como os contratos de abertura de crédito rotativo, as renegociações de dívidas e os washouts de contratos, este é um grande problema para quem busca RJ.
b) Cédula de Produto Rural (CPR):
A Lei da CPR excluiu as CPRs com entrega física e originárias de barter da recuperação judicial.
A única modalidade de CPR que poderia ser incluída é a CPR com liquidação financeira, originária de um mútuo. Todavia, ainda assim é necessário observar o próximo impedimento.
c) Créditos com alienação fiduciária:
Créditos garantidos por alienação fiduciária de bens móveis ou imóveis, com tratores ou propriedades rurais, salvo raras exceções, também não estão sujeitos ao regime da recuperação judicial.
Aqui o impedimento diz respeito à garantia do crédito, não propriamente à sua natureza, portanto, ainda que o contrato possa ser submetido à recuperação judicial, se estiver garantido por alienação fiduciária, ele será considerado extraconcursal.
Essas exceções reduzem significativamente a eficácia da recuperação judicial para grande parte dos produtores, que continuam expostos à cobrança e execução judicial mesmo durante a RJ.
Custos elevados e prazos longos
A recuperação judicial é um processo caro. Envolve honorários advocatícios, custas judiciais, remuneração do administrador judicial, além de despesas contábeis e operacionais. Esses custos se acumulam justamente no momento de maior fragilidade financeira do produtor e, por vezes, inviabilizam a própria recuperação.
Ademais, a tramitação judicial é lenta e burocrática: aprovação de plano, fiscalização, assembleias, recursos… tudo isso pode durar anos.
Enquanto isso, a reputação do produtor no mercado sofre. Bancos, cooperativas, fornecedores, revendas e parceiros comerciais costumam restringir ou suspender relações com produtores em recuperação, dificultando o acesso a novos créditos e insumos.
O risco de perder o controle do seu negócio
Ao entrar com a RJ, o produtor rural submete sua gestão a um processo judicial rigoroso. As decisões passam a ser fiscalizadas por um administrador judicial e pelos credores.
Medidas estratégicas, como venda de bens, renegociações ou ajustes operacionais, dependem de autorização judicial ou da assembleia de credores. Isso reduz a autonomia e agilidade na tomada de decisões e pode comprometer a condução do seu negócio.
Em cenários mais críticos, o produtor pode ser forçado a vender ativos ou abrir mão de partes do negócio para manter o apoio dos credores e investidores.
Existem alternativas menos arriscadas?
A boa notícia é que a recuperação judicial não é a única alternativa para o produtor rural endividado. Existem instrumentos jurídicos específicos para o agronegócio, mais eficazes e menos custosos. Algumas das alternativas são:
- Renegociação extrajudicial com credores, baseada em planejamento técnico e jurídico;
- Alongamento de dívidas rurais, com base em normativas do Banco Central e do Manual de Crédito Rural;
- Revisão de contratos, especialmente quando há encargos abusivos ou descumprimento de normas legais.
O primeiro passo é a análise jurídica e econômica detalhada da situação. Com base nisso, é possível estruturar uma estratégia personalizada, com foco na preservação do negócio e do patrimônio.
Já falamos, em outro momento, sobre saneamento do passivo. Essa é uma medida importante que o produto pode tomar. Leia mais clicando aqui.
Exemplo real: quando uma recuperação judicial foi evitada
Há alguns anos, um produtor rural, que também tinha uma revenda de insumos, nos procurou com o seguinte problema: ele tinha um bom comprador para seu negócio, porém um endividamento muito grande com vários bancos, revendas, cooperativas e produtores que depositaram grãos em seus armazéns. Se ele vendesse a empresa naquele momento, todo o dinheiro seria consumido para pagar as dívidas. A recuperação judicial era uma carta à mesa e a solução que o cliente entendia viável.
Após uma criteriosa análise documental, observamos vários pontos que poderiam ser explorados para a redução ou a renegociação do endividamento. Diante disso, optamos por uma reestruturação jurídica organizada da empresa, onde passamos a discutir judicialmente alguns contratos e trabalhar com negociações em outras pontas, tanto judiciais, como extrajudiciais.
Ao final do período, que levou cerca de dois anos, o produtor conseguiu reestruturar suas obrigações, diminuir significativamente seu endividamento e vender a empresa com boa sobra de caixa. E mais, todos os produtores que eram seus credores receberam 100% do valor dos grãos depositados. Este é um exemplo de como uma reestruturação jurídica evitou um dispendioso processo de recuperação judicial.
Pense bem antes de optar pela recuperação judicial
A recuperação judicial pode parecer atraente em um primeiro momento, mas seus riscos, custos e limitações exigem cautela.
Antes de optar por esse caminho, é fundamental consultar um advogado especializado em direito do agronegócio e realizar o saneamento da sua dívida: um diagnóstico jurídico e econômico que possibilite encontrar a estratégia mais segura e eficiente para preservar seu negócio e seu patrimônio.
A melhor solução nem sempre é a mais popular, mas sim aquela que garante o futuro da sua atividade.
Para quem é indicada a Recuperação Judicial?
Diante de todo o exposto acima, a recuperação judicial nos parece ser mais adequada apenas para grandes grupos empresariais, com dívidas pulverizadas entre diversos credores e categorias.
Mesmo assim, não é um procedimento barato, tampouco simples, pois se lidará com vários credores em um só processo e com uma infinidade de recursos que é própria deste procedimento.
Tanto que, apesar da “alta de 535% de pedidos de recuperação judicial no ano passado”, os números absolutos ainda são baixos: de 20 pedidos no ano de 2022, o número subiu para 127 em 2023, e isto em todo território nacional. Em 2024, ano do “recorde histórico” foram apenas 2.273 pedidos em todo o país, o que mostra ser um número ainda baixo.
Tobias Marini de Salles Luz – advogado, sócio-fundador da banca LCB Advogados. Contato:
📞 WhatsApp: (44) 9 9158-2437
📧 E-mail: tobias@direitorural.com.br
📱 Instagram: @tobiasluzadv
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