Não há porque combater o direito subjetivo de ser proprietário de imóvel rural, já que a própria Constituição Federal garante, de forma expressa, o direito à propriedade (art. 5º, XXII)[1].
Não obstante esta certeza, ao tempo em que constitucionalmente se afirma o direito de propriedade, não é menos relevante destacar que da própria Carta se depreende que o proprietário não o tem o bem somente para servir-se dele, mas também para a partir dele servir o outro (art. 5º, XXIII)[2], no caso, a sociedade sob pena de ser punido pelo Estado.
Não obstante seja voz corrente que sobre o imóvel rural pesa a hipoteca social, onde o meio ambiente deve ser preservado para benefício de todos, pouco se ouve sobre outra hipoteca social que grava o mesmo bem, e com a finalidade de servir a todos, asaber, produzir alimentos.
Isto mesmo. A propriedade rural deve, se esta for sua vocação, produzir alimentos para o bem de todos.
Afinal, não é possível obter-se tal bem da vida e para a vida sem que seja por intermédio da terra corretamente cultivada.
Se ambos os gravames não forem satisfeitos, a propriedade rural pode submeter-se à desapropriação-sanção, poder este conferido ao Estado nos termos do art. 184 da Carta Federal[3].
Com efeito, o Estado carece de uma propriedade rural em franco processo de produção para que tenha condições de organizar o abastecimento alimentar, o que está no âmbito de sua competência (art. 23, VIII/CF)[4].
Se a primeira hipoteca diz respeito ao meio ambiente preservado para assegurar vida saudável, a segunda trata da produção de alimentos que garante a própria vida, o que demonstra que esta é superior àquela.
A despeito da supremacia de uma em relação a outra, o certo é que nenhuma das duas hipotecas pode ser baixada, devendo o imóvel rural responder integralmente por uma e outra.
As hipotecas sociais da garantia do meio ambiental e da produção de alimentos podem ser vistas na expressão “função social da propriedade” constante do art. 186, da Constituição Federal[5].
Com efeito, diz o mencionado dispositivo constitucional que a função social da propriedade é satisfeita quando há aproveitamento racional e adequado da terra e preservação do meio ambiente, respectivamente, nos seus incisos I e II.
No aproveitamento racional e adequado da propriedade rural, conforme dispõe o caput do art. 186 da Constituição Federal, exige-se que sejam observados os critérios e graus de exigência estabelecidos em lei que, no caso, é a Lei 8.629/1993[6], diploma legal que regulamenta os dispositivos relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal.
De maneira objetiva o art. 2º[7] da Lei submete à sanção da desapropriação a propriedade rural que não cumprir a função social prevista no seu art. 9º, que trata justamente da propriedade produtiva.
Ou seja, somente a propriedade produtiva é que cumpre sua função social de produzir bens úteis à sociedade, e somente neste caso é que o direito de propriedade está preservado.
Olhando com mais cautela o art. 9º[8] nos seus incisos de I a IV se nota que eles reproduzem, ipsis litteris, o contido nos mesmos incisos do art. 186 da Constituição Federal.
Por sua vez, é nos parágrafos do referido dispositivo que estão postos pontos específicos sobre a função social da propriedade no campo de sua produtividade.
No parágrafo primeiro está dito que “considera-se racional e adequado o aproveitamento que atinja os graus de utilização da terra e de eficiência na exploração especificados nos §§ 1º a 7º do art. 6º[9] desta lei”, onde graus de utilização e eficiência na exploração são os pontos principais a serem considerados.
Portanto, graus de utilização da terra e eficiência na exploração são requisitos básicos para caracterizar o aproveitamento racional da propriedade rural os quais, para serem medidos, levarão em conta o que está postos nos parágrafos 1º a 7º do art. 6º, a cujo dispositivo remete o art. 9º.
No caput do art. 6º está posto que a propriedade é considerada produtiva quando, ao ser explorada econômica e racionalmente, atingir os graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo os índices fixados pelo órgão federal competente.
Quanto a utilização da terra, diz o parágrafo 1º, do art. 6º , esta deverá ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento) da área, o que se obtém pelo cálculo entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel.
No que pertine ao grau de eficiência na exploração este deverá ser igual ou superior a 100% (cem por cento), segundo dispõe o parágrafo 2º, do mesmo art. 6º, observada a sistemática adotada pelos seus incisos I a III.
Portanto, proprietários rurais que sejam negligentes na utilização plena da terra, deixando-a parcial ou totalmente ociosa, ou que ali desenvolvam exploração de modo deficiente, num e noutro caso está prejudicando a sociedade colocando em risco seu direito de ser proprietário do bem.
Já que a propriedade rural deve ser sempre produtiva para satisfação de todos e não somente do seu proprietário, isto faz germinar uma maneira nova de tratar as questões que envolvem a atividade agrícola, onde o interesse da coletividade deve pautar a aplicação da Lei.
Ademais, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) – Lei 12.376/2010 – dispõe em seu art. 5º que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”
Assim, ao aplicar a Lei o juiz deve atentar para as chamadas exigências do bem comum, que na questão da propriedade rural há de levar em conta o meio ambiente preservado e a racional e adequada utilização da área.
A produção de alimentos tem o efeito não só de assegurar vida e dignidade de vida a todos, como também de preservar a paz social e a ordem pública que decorrem de uma organização do abastecimento alimentar (Lei 8.171/91, art. 2º, IV)[10].
Assim, da junção de ambas as hipotecas sociais, diga-se de passagem, que jamais podem se separar, o imóvel rural e a atividade nele desenvolvida devem passar ao um tratamento jurídico que necessariamente seja balizado pelos indigitados gravames.
Noutra parte, não é menos certo afirmar que toda e qualquer atividade do Estado voltada à distribuição de terras rurais, deve pautar-se pelo mesmo sentido, ou seja, de que ambas as hipotecas sociais sejam observadas e respeitadas pelo novo proprietário, já que tais ônuse stão vinculados ao bem, independentemente de quem sobre ele exerça domínio.
Lutero de Paiva Pereira – Advogado especializado em direito do agronegócio. Fundador da banca na Lutero Pereira & Bornelli – advogados. Contato: (44) 99158-2437 (whatsapp) / pb@pbadv.com.br / www.pbadv.com.br
[1] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
[2] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
[3]Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.
[4] Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
VIII – fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar;
[5] Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
[6] Dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal.
[7]Art. 2º A propriedade rural que não cumprir a função social prevista no art. 9º é passível de desapropriação, nos termos desta lei, respeitados os dispositivos constitucionais. (Regulamento)
[8] Art. 9º A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo graus e critérios estabelecidos nesta lei, os seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
§ 1º Considera-se racional e adequado o aproveitamento que atinja os graus de utilização da terra e de eficiência na exploração especificados nos §§ 1º a 7º do art. 6º desta lei.
§ 2º Considera-se adequada a utilização dos recursos naturais disponíveis quando a exploração se faz respeitando a vocação natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade.
§ 3º Considera-se preservação do meio ambiente a manutenção das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas.
§ 4º A observância das disposições que regulam as relações de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho, como às disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parceria rurais.
§ 5º A exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais é a que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel.
§ 6º (Vetado.)
[9] Art. 6º Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente.
§ 1º O grau de utilização da terra, para efeito do caput deste artigo, deverá ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel.
§ 2º O grau de eficiência na exploração da terra deverá ser igual ou superior a 100% (cem por cento), e será obtido de acordo com a seguintes istemática:
I – para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea;
II – para a exploração pecuária, divide-se o número total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea;
III – a soma dos resultados obtidos na forma dos incisos I e II deste artigo, dividida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determina o grau de eficiência na exploração.
§ 3º Considera-se efetivamente utilizadas:
I – as áreas plantadas com produtos vegetais;
II – as áreas de pastagens nativas e plantadas, observado o índice de lotação por zona de pecuária, fixado pelo Poder Executivo;
III – as áreas de exploração extrativa vegetal ou florestal, observados os índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea, e a legislação ambiental;
IV – as áreas de exploração de florestas nativas, de acordo com plano de exploração e nas condições estabelecidas pelo órgão federal competente;
V – as áreas sob processos técnicos de formação ou recuperação de pastagens ou de culturas permanentes, tecnicamente conduzidas e devidamente comprovadas, mediante documentação e Anotação de Responsabilidade Técnica. (Redação dadapela Medida Provisória nº 2.183-56, de 2001)
§ 4º No caso de consórcio ou intercalação de culturas, considera-se efetivamente utilizada a área total do consórcio ou intercalação.
§ 5º No caso de mais de um cultivo no ano, com um ou mais produtos, no mesmo espaço, considera-se efetivamente utilizada a maior área usada no ano considerado.
§ 6º Para os produtos que não tenham índices de rendimentos fixados, adotar-se-á a área utilizada com esses produtos, com resultado do cálculo previsto no inciso I do § 2º deste artigo.
§ 7º Não perderá a qualificação de propriedade produtiva o imóvel que, por razões de força maior, caso fortuito ou de renovação de pastagens tecnicamente conduzida, devidamente comprovados pelo órgão competente, deixar de apresentar, no ano respectivo, os graus de eficiência na exploração, exigidos para a espécie.
[10] Art. 2° A política fundamenta-se nos seguintes pressupostos:
IV – o adequado abastecimento alimentar é condição básica para garantir a tranquilidade social, a ordem pública e o processo de desenvolvimento econômico-social;
Lutero de Paiva Pereira – Advogado especializado em direito do agronegócio. Fundador da banca na Lutero Pereira & Bornelli – advogados. Contato: (44) 99158-2437 (whatsapp) / pb@pbadv.com.br / www.pbadv.com.br
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