O crédito rural, independente do título empregado para sua contratação (CCB), está debaixo de legislação especial.
O crédito rural, posto sob legislação especial, foi institucionalizado pela Lei nº 4.829/65, com sua distribuição e aplicação segundo a política de desenvolvimento da produção rural do País, tendo em vista o bem-estar do povo (art. 1º).
Para que o crédito rural apoiasse efetivamente o desenvolvimento da produção rural do País, a primeira preocupação do legislador foi submeter a contratação dos encargos financeiros à prévia fixação do índice determinado pela Autoridade competente.
Assim, nos termos do art. 14 da Lei nº 4.829/65, o que está ratificado pelo contido no art. 5º do DL 167/67, os juros no crédito rural somente podem ser convencionados nos limites do índice estabelecido pelo Conselho Monetário Nacional.
Uso de CCB para formalizar operação de Crédito Rural
Não obstante, alguns agentes financeiros vêm se utilizando da Cédula de Crédito Bancário – CCB, para contratar operações de crédito rural. Em face disto, tais financiadores têm sustentado que, por estar presente nessa Cédula, o crédito perde sua natureza especial e pode se sujeitar às normas gerais dos contratos bancários.
Ao forçar este entendimento, pretendem aplicar ao mútuo encargos financeiros remuneratórios e moratórios em índices diversos daqueles que são próprios do Crédito Rural, bem assim estabelecer cláusulas e condições na cártula diversas das que devem constar do título, em face do que preconiza a legislação especial que rege o financiamento especial.
Natureza jurídica do mútuo
Contudo, é mister asseverar que o mútuo especial não pode sofrer qualquer alteração em sua natureza jurídica pelo fato de estar presente em título “não-rural”, visto que sua especialidade é determinada pela Lei que o institucionalizou e não pelo instrumento no qual se dá a contratação.
Se, quando o agente financeiro concede financiamento imobiliário via CCB, as cláusulas e estipulações da cártula seguem as regras do mútuo imobiliário e não do mútuo comercial, não é diferente quando o financiamento presente na Cártula é de natureza rural.
Com efeito, quem define a natureza jurídica do mútuo rural é a Lei que o institucionalizou, a saber, a Lei 4.829/65, notadamente em seu art. 2º, em cujo diploma legal estão previstas também as fontes dos recursos, seus beneficiários, aplicadores, etc., bem assim a competência do Conselho Monetário Nacional para regulamentar as operações.
Segundo esta lei, “considera-se crédito rural o suprimento de recursos financeiros por entidades públicas e estabelecimentos de crédito particulares a produtores rurais ou a suas cooperativas para aplicação exclusiva em atividades que se enquadrem nos objetivos indicados na legislação em vigor.”
Legislação específica
Portante, presente em CCB e CCR (Cédula de Crédito Rural), ou mesmo em Escritura Pública de Confissão de Dívida, o crédito rural fica integralmente sujeito à legislação especial, a saber, as Leis 4.829/65 e 8.171/91, o DL 167/67 e o Manual de Crédito Rural.
1 – Relativamente à Lei 4.829/65, é sabido que este é o diploma legal que institucionalizou o Crédito Rural no País e, ao fazê-lo, fixou pontos determinantes que financiador e financiado devem observar para contratar com tais recursos.
Naquilo que expressamente não estabeleceu, a própria Lei, em seu art. 14, delegou competência ao Conselho Monetário Nacional para fazê-lo, a saber, prazos, juros e demais condições da operação.
Entenda mais sobre o tema neste artigo: Juros limitados no crédito rural – recursos livres ou não controlados (clique para ler)
2 – A seu turno, o art. 50 da Lei 8.171/91 dispôs sobre as condições que o mutuante deve observar para contratação dessas operações, de modo que o que a Lei determina as partes não podem contrariar.
3 – Finalmente, no DL 167/67, na parte que trata do financiamento rural, e não necessariamente da Cédula Crédito Rural, está dito, notadamente em seu art. 5º, que os juros remuneratórios incidentes no financiamento devem estar em sintonia com a taxa estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional, enquanto em seu parágrafo único está expressamente fixada a taxa moratória incidente sobre o financiamento, que é de 1% ao ano.
Não obstante a epígrafe do referido Decreto-Lei dispor sobre títulos de crédito rural, é importante salientar que, dos artigos 1º a 8º, o que se tem é disciplina voltada diretamente ao “financiamento rural”, independente do título que esteja formalizado, a qual se junta à legislação especial que trata do tema.
Vale destacar que a taxa moratória está disciplinada no Capítulo I do DL 167/67, que trata do Financiamento Rural, e não a partir do Capítulo II, que trata das Cédulas de Crédito Rural, de modo que o referido índice vai ser sempre aplicado ao financiamento rural, independentemente do título utilizado para sua contratação.
Entendimento jurisprudencial
A jurisprudência mais moderna se solidificou em ambos os sentidos, isto é, que os juros remuneratórios no Crédito Rural seguem as taxas estabelecidas pela referida Autoridade, enquanto que os juros moratórios devem estar limitados a taxa legal, afastados quaisquer pactos que extrapolem este índice, a exemplo de comissão de permanência, taxa CDI, ANBID e quaisquer outros.
Esse entendimento levou em conta não o título onde o mútuo se encontra, mas sim o mútuo propriamente dito, o qual segue regra especial inderrogável pelas partes.
Mais especificamente, tanto o Tribunal de Justiça do Paraná quanto de São Paulo já entenderam que, comprovada a finalidade rural do crédito, independente se ele foi formalizado em CCB ou Cédula Rural, o mútuo não perde sua natureza rural, devendo ser aplicadas as normas do DL 167/67:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA Nº 3.317/2010 E EMBARGOS À EXECUÇÃO Nº 7.331/2010. SENTENÇA QUE JULGA PARCIALMENTE PROCEDENTES OS PEDIDOS INICIAIS.RECURSO DA PARTE RÉ. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO QUE SE VINCULA AS CÉDULAS DE CRÉDITO RURAL. RESPEITO AO DECRETO-LEI 167/67. JUROS MORATÓRIOS LIMITADOS EM 1% AO ANO. ART. 11 DO DECRETO-LEI 167/67. JUROS REMUNERATÓRIOS.MANUTENÇÃO DA SENTENÇA NO TOCANTE A LIMITAÇÃO DOS JUROS A 12% A.A., RESSALVANDO-SE APENAS QUE DEVE SER RESPEITADO O PERCENTUAL CONTRATADO NOS PERÍODOS EM QUE O PERCENTUAL FOR MENOR.CONDENÇÃO POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ.POSSIBILIDADE. HIPÓTESES PREVISTAS NO ART. 17 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL CONFIGURADAS.MANUTENÇÃO. COMPENSAÇÃO DE HONORÁRIOS.POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DA SÚMULA 306 DO STJ.RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.RECURSO ADESIVO. REDISTRIBUIÇÃO DA SUCUMBÊNCIA. NECESSIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.(TJPR – 16ª C.Cível – AC – 1422758-4 – Campo Mourão – Rel.: Celso Jair Mainardi – Unânime – – J. 04.11.2015)
Disponibilizado via DRJURIS – jurisprudência selecionada do agronegócio
Tema: Financiamento Rural
Subtema: Crédito Rural em CCB
Tópico: A favor, permitindo“EMBARGOS À EXECUÇÃO. Cédula de Crédito Bancário. Improcedência. Apelo dos embargantes. Contrato que, a despeito da denominação cédula de crédito bancário, tem natureza de cédula rural pignoratícia. Compreensão firmada em virtude da destinação do mútuo ao custeio de flores (gérberas), dadas em penhor, bem como em função da sujeição à legislação relativa à subvenção econômica nas operações de crédito rural, da previsão de seguro agrícola e da utilização de recursos do Crédito Rural. Aplicabilidade, portanto, dos ditames do Decreto-Lei nº 167/67. […] RECURSO PROVIDO” (TJSP; AC 1000239-32.2016.8.26.0420; Ac. 13193400; Paranapanema; Décima Quinta Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Ramon Mateo Júnior; Julg. 21/08/2012; DJESP 20/12/2019; Pág. 697, g.n.)
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Tema: Financiamento Rural
Subtema: Crédito Rural em CCB
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Comprovação
Uma condição defendida pelos Tribunais para se reconhecer a aplicação da legislação relativa ao Crédito Rural também em Cédulas de Crédito Bancário é a comprovação de que os recursos obtidos pela operação tenham sido inteiramente aplicados na atividade rural, já que a lei diz que o crédito rural é caracterizado por sua destinação.
Portanto, é indicado que o produtor rural guarde comprovantes que demonstrem a destinação agrícola do mútuo, como os comprovantes de pagamento de maquinários, insumos, notas fiscais de serviços e produtos, recibos, extratos bancários, comprovação de contratação de seguro rural vinculado ao título etc., a fim de que se possa comprovar judicialmente a destinação dos recursos..
Essa indicação é válida porque algumas instituições financeiras acabam por formalizar Cédulas de Crédito Bancário sem nenhum indicativo de destinação rural, ainda que que o valor por ela liberado seja exclusivamente para aplicação na atividade. Por isso a importância de possuir e guardar documentos que sejam aptos a demonstrar onde foi gasto o valor, para se comprovar a destinação rural do mútuo.
Política Agrícola
Se tudo que acima foi visto não fosse suficiente para defender o entendimento de que o Crédito Rural, independentemente do título em que é contratado, é sempre um mútuo especial, regido por legislação própria, o fato de agora integrar o rol seleto dos instrumentos de Política Agrícola, conforme disposto indiretamente no inciso I, art. 187 da Constituição Federal e diretamente no inciso XI, art. 4º da Lei Agrícola, é bastante para lhe assegurar tratamento jurídico com distinção.
Toda esta disciplina especial estendida ao Crédito Rural se justifica em face da finalidade do mútuo, a saber, apoiar o desenvolvimento do setor agropecuário (mútuo de fomento), tendo em conta sua relevância para a realidade econômico-social do País e colocando-o sob disciplina do Estado (Conselho Monetário Nacional), voltado mais ao interesse do setor produtivo primário, do que propriamente do Sistema Financeiro Nacional.
Isto para preservar sua característica de instrumento de apoio ao desenvolvimento da produção rural que, conforme é sabido, interfere diretamente no abastecimento alimentar e, então, na preservação da ordem pública e da paz social (art. 2º, V da Lei nº 8.171/91), nada poderá modificar sua aplicação para contrariar o processo produtivo primário.
No que diz respeito ao campo econômico, é sabido que o agronegócio tem participação destacada na formação do Produto Interno Bruto (PIB), aproximadamente 22%, enquanto que, no ambiente social, a produção de alimentos é responsável direta pela manutenção da ordem pública e da paz social, conforme expressamente reconhecido pelo inciso IV, do art. 2º da Lei 8.171/91.
1 – Sendo um instrumento de Política Agrícola e não um crédito qualquer, como de fato o é, o crédito rural deve ser aplicado segundo os pressupostos nos quais essa Política se assenta, os quais estão presentes no art. 2º da Lei 8.171/91.
2 – Outrossim, como instrumento de Política Agrícola, um dos objetivos específicos do crédito rural é o fortalecimento econômico do produtor rural, consoante sobressai do inciso III, art. 3º da Lei 4.829/65.
Não há dúvida de que um crédito rural oneroso ao seu tomador, onde as taxas de juros são praticadas em índices incompatíveis com a realidade econômica da atividade financiada, labora contra o desenvolvimento da produção rural, o que, em última instância, vai refletir negativamente na garantia do abastecimento alimentar do País e, então, na ordem social.
Conclusão sobre o Crédito Rural em CCB (e outros títulos)
Logo, aplicado inicialmente através de cédula de crédito rural (Dl 167/67) e mais tarde vindo a figurar também em cédula de crédito bancário (Lei nº 10.931/2004), nesta ou naquela cédula o mútuo preserva a mesma natureza jurídica da Lei que o institucionalizou e com a disciplina dali decorrente (Lei nº 4.829/65). Ou seja, o crédito rural, em qualquer título, é sempre crédito rural.
É forçoso reconhecer que no crédito rural, como instrumento de política agrícola voltado ao desenvolvimento da produção rural, independentemente do título empregado pelo mutuante para sua contratação, as estipulações dele constantes devem guardar harmonia com o disposto na legislação especial, inclusive no tocante às taxas de juros ali pactuadas, as quais não podem prescindir da fixação do seu índice pela Autoridade competente.
Qualquer tratamento dado ao Crédito Rural que seja divergente da abordagem supra representa, na prática, uma revogação tácita da Lei que o institucionalizou, além de ensejar a descaracterização de um dos instrumentos mais notáveis de Política Agrícola que o Estado lança mão para fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar, conforme sobressai do inciso VIII, art. 23 da Constituição Federal.
Leia mais sobre o Financiamento Rural: Financiamento Rural bem explicado
Lutero de Paiva Pereira – Advogado especializado em direito do agronegócio. Fundador da banca na Lutero Pereira & Bornelli – advogados. Contato: (44) 99158-2437 (whatsapp) / pb@pbadv.com.br / www.pbadv.com.br
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