A rigor, o MCR 2.6.4 não condiciona o alongamento da dívida rural à apresentação do pedido antes do vencimento da operação.
O crédito rural e a competência do Conselho Monetário Nacional (CMN)
O crédito rural é um dos instrumentos de política agrícola mais eficazes para promover o desenvolvimento do setor agropecuário do País. Acolhido pelo inc. I do art. 187 da Constituição Federal de 1988[1], sua institucionalização remonta à Lei nº 4.829/65, estando presentemente regulamentado, em parte, também pela Lei Agrícola – Lei nº 8.171/91.
Como crédito voltado ao fomento do setor produtivo primário, sua aplicação segue regras próprias ditadas pelo Conselho Monetário Nacional, que detém competência indelegável para disciplinar o financiamento em toda a sua extensão, o que sobressai do art. 14 da Lei nº 4.829/65[2].
O Conselho indica seus beneficiários, a fonte de recursos, os títulos passíveis de serem empregados pelo financiador na contratação da operação, as taxas de juros remuneratórios incidentes sobre o mútuo, etc.
Desta forma, o crédito rural se submete integralmente à força do dirigismo contratual, de maneira que financiador e financiado só podem contratar e conduzir o financiamento sob observância direta e objetiva das normas do Conselho, notadamente aquelas que estão presentes no seu famoso Manual de Crédito Rural (MCR), publicizado pelo Banco Central do Brasil.
Quando uma instituição financeira pretende operar com recursos do crédito rural, o Manual exige que se busque autorização expressa do Banco Central do Brasil (MCR 1.1.1)[3], bem como é mister que o financiador ajuste as operações às instruções do Banco Central do Brasil (MCR 1.1.1.”b”)[4].
Uma vez autorizada pelo BACEN a operar no crédito rural, a instituição passa a fazer parte do chamado Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR), conforme dispõe o art. 7º da Lei nº 4.829/65[5].
Crédito rural – instrumento de política agrícola
A sujeição do mútuo às normas do Manual de Crédito Rural (MCR) tem como razão de ser o fato do crédito rural ser um instrumento de política agrícola, com aplicação voltada a objetivos que visam o fomento da agropecuária (art. 3º da Lei nº 4.289/65)[6] e distribuição que visa o bem-estar do povo (art. 1º da Lei nº 4.829/65)[7].
A dupla função do crédito, interesse privado do produtor rural – fomento da agropecuária – e interesse social – bem-estar do povo – justifica tratamento tão singular da lei especial.
Nestes termos, qualquer disposição que vá além dos normativos do Conselho caracteriza usurpação de competência, com vício suficiente para invalidar o ato.
É ilegal a exigência de notificação antes do vencimento para o alongamento da dívida rural nos moldes do MCR 2.6.4
Para exemplificar sobre a questão de usurpação de competência do Conselho, basta trazer à consideração o que alguns agentes financeiros, ou, em certos casos, até mesmo a jurisprudência, tem feito na aplicação da regra do Conselho prevista no Manual de Crédito Rural 2.6.4.
Assegura o MCR 2.6.4[8] o direito do mutuário de alongar ou reprogramar o pagamento da dívida quando presentes as condições ali estabelecidas.
Dentre as condicionantes a serem satisfeitas pelo mutuário para o deferimento do seu pleito de mudança do cronograma de pagamento do mútuo, não se encontra nenhuma disposição que exija que o pedido administrativo de prorrogação seja formalizado antes do vencimento da operação.
Desta forma, quando o financiador, ou a jurisprudência, nega o referido pedido julgando-o extemporâneo por ter sido feito depois de vencido o contrato, salvo melhor juízo, o MCR 2.6.4 está sendo substancialmente alterado em prejuízo do devedor, invadindo a competência do Conselho Monetário Nacional, que nada dispôs neste sentido.
Se, portanto, o MCR 2.6.4, norma editada pelo Conselho, não condiciona o estudo de viabilidade do pedido de alongamento da dívida rural à apresentação do pedido pelo mutuário em data anterior ao vencimento da operação, dispor de modo diverso contraria a norma em seu aspecto teleológico.
Quanto ao fim supremo do referido dispositivo, já escrevemos:
“O objetivo primordial do alongamento de dívida rural é proteger o devedor contra os efeitos nefastos do inadimplemento, de sorte a evitar a instauração de eventual processo de cobrança judicial do mútuo pelo credor. Também se afigura como objetivo central do alongamento impedir que os números da dívida aumentem com a incidência das penalidades da mora. Também de destacar que seu desiderato é, de alguma forma, fomentar e apoiar o setor. Desta forma, o alongamento está voltado à proteção do tomador dos recursos, sem que isto implique em ônus ou mesmo em prejuízo para o emprestador.”[9]
Distinção entre o MCR 2.6.4 e o MCR 2.3.15
Os que defendem tal condicionante para o deferimento do pleito do mutuário invocam o contido no MCR 2.3.15[10] onde, ali sim, o pedido de alongamento está circunscrito a um período de tempo, a saber, após a data da colheita e antes do vencimento da operação (MCR 2.3.15.a).
No entanto, entre o MCR 2.3.15 e o MCR 2.6.4 existe uma grande diferença quanto ao fato jurídico que embasa uma e outra norma e justifica disciplina específica do Conselho.
No caso do MCR 2.3.15, o pedido de alongamento não tem como base o comprometimento financeiro do mutuário, pois ele não sofreu perda de produção, nem perda de receita por problema de mercado. Diferentemente disto, no caso do MCR 2.6.4, o alongamento tem tudo a ver com perda de produção ou questão de mercado, de maneira que o comprometimento da receita é real.
Como no primeiro caso – MCR 2.3.15 – o mutuário não perdeu a produção, o normativo exige que o financiado deposite a produção obtida como garantia do financiamento a ser prorrogado (MCR 2.3.15.b), coisa que, no segundo caso – MCR 2.6.4 – está longe de ser requerido, pois o pressuposto é que não existe produção.
Assim, considerando que as normas se prestam a garantir o alongamento da dívida em situações fático-jurídicas diversas, cada uma voltada a uma realidade específica, a aplicação deve ser feita nos estritos limites de sua disposição, isto é, exigir que o pedido seja feito até certa data no caso do MCR 2.3.15 e não exigir que o pedido seja feito até certa data no caso do MCR 2.6.4.
Conclusão
Em face de todo o exposto, três questões relevantes devem ser apontadas, a saber:
1ª) um pedido de alongamento de dívida rural fundamentado no MCR 2.6.4 deve ser analisado nos limites da disposição desta norma, não podendo o dispositivo ser ampliado para conter outras condicionantes. Assim, as condicionantes previstas no MCR 2.3.15, por se tratar de normativo que se volta a proteção de fato jurídico diverso, não podem ser adicionadas ao MCR 2.6.4, que se volta a proteger o produtor rural em situação fático-jurídica própria;
2ª) exigir o que o MCR 2.6.4 não exige, a saber, que o pedido de prorrogação seja feito até a data do vencimento do financiamento é estabelecer uma condicionante que o Conselho não estabeleceu, caracterizando usurpação de sua competência com afronta ao art. 14 da Lei nº 4.829/65. Neste caso a exigência se reveste de flagrante ilegalidade; e
3ª) restringir o direito do mutuário rural de alongar a dívida nos moldes do MCR 2.6.4, estabelecendo uma condicionante não prevista no normativo, é torná-lo mais exigente do que este se mostra, prejudicando sua aplicação para a proteção do produtor rural nos momentos de crise. Ocorrendo isto, o que se verifica é uma agressão ao art. 23, inc. VIII[11] da Constituição Federal, onde a redação cogente impõe ao Estado fomentar a produção agropecuária, ao invés de criar obstáculos para que ela se desenvolva. Neste caso, a inconstitucionalidade do ato é notória.
Lutero de Paiva Pereira – Advogado especializado em direito do agronegócio. Fundador da banca na Lutero Pereira & Bornelli – advogados. Contato: (44) 99158-2437 (whatsapp) / pb@pbadv.com.br / www.pbadv.com.br
[1] Art. 187. A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente:
I – os instrumentos creditícios e fiscais;
[2] Art. 14. Os termos, prazos, juros e demais condições das operações de crédito rural, sob quaisquer de suas modalidades, serão estabelecidos pelo Conselho Monetário Nacional, observadas as disposições legais específicas, não expressamente revogadas pela presente Lei, inclusive o favorecimento previsto no art. 4º, inciso IX, da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, ficando revogado o art. 4º do Decreto-lei nº 2.611, de 20 de setembro de 1940.
[3] 1 – Para atuar em crédito rural, a instituição financeira deve obter autorização do Banco Central do Brasil, cumprindo-lhe:
[4] 1 – Para atuar em crédito rural, a instituição financeira deve obter autorização do Banco Central do Brasil, cumprindo-lhe:
- b) difundir normas básicas entre suas dependências e mantê-las atualizadas, com o objetivo de ajustar as operações aos critérios legais pertinentes e às instruções do Banco Central do Brasil, sistematizando métodos de trabalho compatíveis com as peculiaridades do crédito e uniformizando a conduta em suas operações;
[5] Art. 7º Integrarão, basicamente, o sistema nacional de crédito rural:
- 3º Poderão incorporar-se ao sistema, além das entidades mencionadas neste artigo, outras que o Conselho Monetário Nacional venha a admitir.
[6] Art. 3º São objetivos específicos do crédito rural:
I – estimular o incremento ordenado dos investimentos rurais, inclusive para armazenamento beneficiamento e industrialização dos produtos agropecuários, quando efetuado por cooperativas ou pelo produtor na sua propriedade rural;
II – favorecer o custeio oportuno e adequado da produção e a comercialização de produtos agropecuários;
III – possibilitar o fortalecimento econômico dos produtores rurais, notadamente pequenos e médios;
IV – incentivar a introdução de métodos racionais de produção, visando ao aumento da produtividade e à melhoria do padrão de vida das populações rurais, e à adequada defesa do solo;
[7] Art. 1º O crédito rural, sistematizado nos termos desta Lei, será distribuído e aplicado de acôrdo com a política de desenvolvimento da produção rural do País e tendo em vista o bem-estar do povo.
[8] 4 – Fica a instituição financeira autorizada a prorrogar a dívida, aos mesmos encargos financeiros pactuados no instrumento de crédito, desde que o mutuário comprove a dificuldade temporária para reembolso do crédito em razão de uma ou mais entre as situações abaixo, e que a instituição financeira ateste a necessidade de prorrogação e demonstre a capacidade de pagamento do mutuário: (Res CMN 4.883 art 1º; Res CMN 4.905 art 1º)
- a) dificuldade de comercialização dos produtos; (Res CMN 4.883 art 1º)
- b) frustração de safras, por fatores adversos; (Res CMN 4.883 art 1º)
- c) eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento das explorações. (Res CMN 4.883 art 1º)
[9] Pereira, Lutero de Paiva. ALONGAMENTO DE DÍVIDA RURAL. Teoria e Prática. Ed. Íthala, 2ª ed. pg. 38
[10] 15 – Admite-se o alongamento e a reprogramação do reembolso de operações de crédito destinadas ao custeio agrícola, observadas as seguintes condições: (Res CMN 4.883 art 1º)
- a) o mutuário deverá solicitar o alongamento após a colheita e até a data fixada para o vencimento;
- b) o reembolso deve ser pactuado em observância ao prazo adequado à comercialização do produto e ao fluxo de receitas do beneficiário;
- c) o produtor deve apresentar comprovante de que o produto está armazenado, mantendo-o como garantia do financiamento;
- d) em caso de operações classificadas com fonte de recursos controlados, deve ser realizada a reclassificação para recursos não controlados.
[11] Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
VIII – fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar;
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