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A Justiça contra a justiça

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Se a pessoa física ou jurídica não pode acessar a justiça por obstáculos que a própria Justiça impõe, a ordem pública e a paz social de alguma forma entram em estado de risco.

Para que o caos não se instale em face da justiça não alcançada, é mister que os procedimentos que lhe são contrários sejam prontamente removidos, pois é bem menos traumático manter a ordem do que restabelecê-la.

Neste artigo a palavra Justiça, escrita com letra maiúscula, representa o Poder Judiciário e a escrita com letra minúscula aponta para o que o cidadão precisa obter para ter uma vida razoável em termos de proteção de seus direitos.

Como a ninguém é dado fazer justiça com as próprias mãos, coisa que está reservada exclusivamente às mãos da Justiça, é imprescindível que estas se mantenham firmemente estendidas a todos e a todo tempo, não podendo encolher-se em direção a alguns e distender-se em direção a outros, sob pena de se transformarem em mãos arbitrárias.

Relativamente à cobrança de custas processuais, isto em razão dos valores exorbitantes, parece que a Justiça, em alguns Estados, tem mãos pouco acolhedoras para com os economicamente menos privilegiados, enquanto de modo diverso se apresenta em relação aos economicamente mais privilegiados.

Advogados que militam em jurisdições onde a cobrança de custas é feita em níveis elevados, vivem o constrangimento de terem que informar seus clientes sobre os valores a serem recolhidos em Juízo para propositura da ação ou, se o caso, para que a peça de defesa seja recebida e levada em consideração no julgamento da causa.

Por outro lado, os clientes que recebem tal informação são tomados por sentimentos de espanto e indignação, pois lhes parece absurdo que tenham que sofrer pressão financeira da própria Justiça.

Isto tem levado à perda do direito, quer pela não propositura da ação, quer pela defesa não exercitada, tendo em vista a incapacidade financeira do titular do direito de estar em Juízo.

Ao criar este embaraço para a busca da justiça, a Justiça promove um atentado contra a própria cidadania, coisa que ao invés de promover, deve sempre combater.

Deste modo, ao se mostrar assim tão seletiva, conquanto beneficia o que mais tem e prejudica quem menos possui, a Justiça agride um de seus postulados máximos, que é o da universalidade de sua atuação onde ninguém pode ficar impedido de acessar seus serviços.

Vale o destaque:

“Infelizmente, a realidade sócio-econômica de nosso país tem imposto a pessoas físicas e jurídicas que dantes não cogitavam pleitear a assistência judiciária gratuita, a necessidade dela se valer para que possa ter acesso ao Judiciário e o julgador moderno não pode ignorar essa realidade, principalmente quando a Lei 1.060/50, não exige, para a concessão da justiça gratuita, a miséria absoluta, nem o requerente ande descalço. O conceito de pobreza estabelecido na referida lei é o do orçamento apertado, de modo que haja prejuízo do sustento do próprio requerente ou de sua família (Dagma Paulino Reis, Dicionário Jurisprudencial, 2ª Ed., São Paulo, RT, pg. 192/193).

Se é legítimo a Justiça cobrar custas tão elevadas para se manifestar na solução de conflitos, o que merece outro tipo de reflexão, fato é que não poderá fazê-lo em detrimento da prestação jurisdicional.

Afinal, afastar da prestação jurisdicional a apreciação do direito somente porque o cidadão não teve como suportar as custas iniciais do processo, pelo exagero dos seus números não ajuda a construir um País melhor.

É preciso, pois, que a Justiça retire a venda, abra os olhos e se ponha em alerta para ver que a prática da cobrança de custas processuais em valores extremos tem feito com que grandes grupos econômicos escolham demandar em Estados que assim procedem, contando com a possibilidade, diga-se de passagem, que não é pequena, da parte adversa não se defender pela incapacidade financeira de suportar os ônus do processo, facilitando o sucesso do pleito sem o exame da própria pretensão deduzida.

Jogando com a tática que lhes é totalmente favorável, não é de causar espanto que, nas ações de execução, por exemplo, os exequentes acabam formulando pedidos tantas vezes inchados com números ilegais e que, mesmo assim, acabam prosperando pela falta de resistência formal do executado.

Em face do exposto, é mister considerar ao menos cinco preceitos constitucionais que, direta ou indiretamente, podem ser aplicados ao tema para constranger o Poder Judiciário a uma prática mais consentânea com o espírito de justiça que deve nortear suas ações.

1º) Em primeiro lugar o caput do artigo 5º, da Constituição Federal dispõe que todos são iguais perante a lei.

Para que todos sejam realmente iguais perante a lei em termos de acesso à Justiça, a lei não pode estabelecer comandos que alimentem a desigualdade.

Com efeito, se a Lei que regulamenta a cobrança de custas da demanda labora na perspectiva do maior e não do menor capacitado de suportá-las, ao invés de patrocinar a igualdade, o que efetivamente dissemina é justamente a prática da desigualdade.

Não deve fugir à percepção da Justiça que o maior pode suportar as custas menores, mas o menor não pode suportar as custas maiores, de modo que, se a Lei quer pautar-se pelo princípio constitucional da igualdade, e não poderá ser diferente, deve levar isto em conta no regramento da matéria.

Portanto, para preservar o princípio da igualdade de todos perante a lei, igualmente no sentido de acesso à Justiça em face de custas da demanda, seu comando deverá estar mais próximo do menor e não do maior, pois somente agindo assim é que estará próxima de ambos.

2º) Em segundo lugar, o inciso XXXV do mesmo art. 5º preceitua que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

A exclusão que a lei pode proporcionar em termos de apreciação do Poder Judiciário da lesão ou ameaça a direito pode se dar de forma direta ou indireta, qualquer delas com efeito fatídico para quem por ela é alcançado.

A Lei que dificulta o acesso à Justiça para o cidadão economicamente mais fraco, cobrando dele aquilo que não pode pagar, dá ensejo a uma exclusão indireta da apreciação pelo Judiciário tanto da lesão como da ameaça de lesão ao seu direito, o que torna sua aplicação flagrantemente inconstitucional.

Majorar as custas da demanda é uma forma de excluir, pela via transversa, da apreciação do Poder Judiciário, o pleito daquele que não pode suportar seus ônus.

A lei que se presta a tanto, querendo ou não, infringe o supracitado preceito constitucional.

3º) Em terceiro lugar, ainda no âmbito do art. 5º, inciso LIV, está dito que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Quando as custas processuais impedem que o devido processo legal se forme, o que acontece, por exemplo, quando a parte requerida é privada do exercício do direito do contraditório por fator alheio a sua vontade, o qual foi imposto pela própria Justiça, a privação dos seus bens não pode se consumar a não ser sob o patrocínio de evidente inconstitucionalidade.

No devido processo legal, é mister que às partes se assegure a plenitude do exercício do direito, não sendo legal o processo que trata desigualmente os que, diante da lei, deveriam ser iguais em termos de oportunidade processual.

O processo é legal quando a lei que estabelece seu regramento pavimenta o acesso ao procedimento, coisa que deve acontecer de forma plena às partes.

4º) Em quarto lugar, não menos relevante notar que do inciso LV do citado art. 5º se depreende que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Ora, se para exercer o contraditório e a ampla defesa o demandado precisa primeiro pagar à Justiça um valor que, em certos casos, está muito além da realidade do cidadão de ganho mediano, na prática, nem o contraditório nem a ampla defesa estão assegurados.

Sem o contraditório e a ampla defesa efetivamente assegurados, o processo se macula pelo vício da inconstitucionalidade e perde sua eficácia.

O demandado pode até não exercer, por decisão pessoal, o contraditório e a ampla defesa, mas jamais poderá ser impedido de fazê-lo por força de ato externo alheio a sua vontade, menos ainda por ato originário da própria Justiça.

) Finalmente, em quinto lugar, o inciso LXXIV do art. 5º prescreve que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, o que denota proteção ao cidadão que se encontra em estado de insuficiência de recursos.

No tocante ao tema, é relevante destacar que, para alguns, a insuficiência de recursos às vezes não é plena, mas somente significativa, enquanto que para outros, eminentemente circunstancial, mesmo dispondo de patrimônio.

No entanto, em ambos os casos, com o poder de impedir que o pagamento das custas se efetive no momento exigido pelo Estado.

Não obstante a previsão sumular do STJ, em determinados Estados a resistência da Justiça em conceder a gratuidade ainda se mantém.

Assim dispõe a Súmula 481: Faz jus ao benefício da justiça gratuita a pessoa jurídica com ou sem fins lucrativos que demonstrar sua impossibilidade de arcar com os encargos processuais.

Se não é o caso do deferimento da gratuidade absoluta, que a Justiça ao menos admita o diferimento das custas para que a prestação jurisdicional não seja prejudicada.

Se a Justiça tem o poder de decidir, contra si ou a seu favor, o pedido da parte de pagamento das custas ao final do processo, e o faz somente em seu benefício, essa tendenciosa disposição de se auto proteger pode sinalizar imparcialidade reprovável.

Conclusão

O exame dos preceitos constitucionais supra parece militar em favor de seis pontos fundamentais:

  • A desigualdade econômica reinante no país não pode alimentar a desigualdade diante da lei. Perante a lei, segundo a Lei Maior, todos são iguais, igualdade que deve reinar também perante a Justiça;
  • Se nenhuma lei, direta ou indiretamente, pode excluir, da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito, aquela que faz a exclusão indireta ao estabelecer custas em valores insuportáveis é norma inconstitucional que a Justiça deve reprovar, ao invés de dela se valer;
  • O devido processo legal requer oportunidades iguais de petição aos que se encontram atrelados aos seus termos, coisa que a Justiça deve primar pela efetividade;
  • Negar à parte a oportunidade do exercício do contraditório e da ampla defesa por exigir o pagamento de custas iniciais que poderiam muito bem ser pagas ao final da demanda pode caracterizar conduta não somente injusta, como também iníqua;
  • Por ter o monopólio da jurisdição, a Justiça não pode levantar qualquer obstáculo ao jurisdicionado para acessar seus serviços;
  • Para não privilegiar o economicamente mais forte e desprestigiar o mais fraco, o que caracterizaria injustiça notória, a Justiça deve rever seu posicionamento em termos de cobrança de custas processuais elevadas.

Para que a Justiça não milite contra a justiça comprometendo o Estado Democrático de Direito, é preciso que sua prática de cobrar custas elevadas seja imediatamente revista, seja para rever imediatamente os valores, seja para exigir seu pagamento somente depois de efetivada a prestação jurisdicional.

Ademais, condicionar a realização dos serviços, os quais somente ela pode executar, ao prévio pagamento dos seus custos, os quais têm contornos de números significativamente incompatíveis com a capacidade de suporte do devedor é, em termos de Justiça, para dizer o mínimo, uma prática que contraria a sua natureza de Poder que objetiva a garantia de direitos dos cidadãos, conforme insculpido no site do Superior Tribunal de Justiça: “O Poder Judiciário é o ramo do Estado responsável pela solução de conflitos da sociedade e garantia de direitos dos cidadãos”.[1]

Lutero de Paiva Pereira – Advogado especializado em direito do agronegócio em Maringá (PR). Contato: www.pbadv.com.br / pb@pbadv.com.br


[1] http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Institucional/Atribuicoes (acessado as 11:00 horas do dia 16.12.2019).

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