Quais são os limites e as coberturas de uma apólice de seguro agrícola cujo objeto é o “custo de produção”?
Essa indagação tem sido recorrente em diversas demandas judiciais, especialmente no estado do Paraná, e suscita debates relevantes entre operadores do direito, especialistas em seguro rural, corretores de seguro e o próprio Poder Judiciário.
O tema, embora técnico, possui implicações práticas diretas para a segurança jurídica dos produtores rurais e para o correto funcionamento do mercado segurador agrícola.
Neste artigo, propomos uma análise jurídica e normativa sobre o conceito de apólices cuja cobertura esteja vinculada ao “custo de produção”, com o objetivo de esclarecer sua natureza e seus efeitos contratuais, sobretudo à luz das modalidades de seguro agrícola efetivamente reconhecidas no ordenamento jurídico brasileiro.
O que diz a SUSEP e o MAPA sobre as modalidades de seguro agrícola
O primeiro ponto a ser considerado é a atual inexistência de regulamentação específica por parte da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) que delimite de forma clara as coberturas e os objetos possíveis nas apólices de seguro rural, assim como sua interpretação e extensão. Embora a SUSEP seja, por força do art. 36 do Decreto-Lei nº 73/1966, a autoridade competente para regulamentar e fiscalizar o setor de seguros privados no Brasil, sua atuação no âmbito do seguro rural tem se concentrado em aspectos formais e operacionais, deixando lacunas importantes quanto à caracterização técnica das modalidades de cobertura — crítica que já apontamos na obra “Seguro Rural” (Ed. Ithala, 2024).
Essa ausência de detalhamento técnico, especialmente neste caso, no que tange à cobertura de “custo de produção” de apólices de seguro rural, tem dado margem a interpretações divergentes no Judiciário, muitas das quais desalinhadas com a realidade do mercado e com a natureza jurídica do contrato de seguro rural.
Desta maneira, é importante olharmos para os normativos existentes para buscar uma melhor compreensão do tema.
Neste aspecto, dentre os poucos documentos oficiais que tratam da temática com a devida precisão técnica, destaca-se o Guia de Seguros Rurais (MAPA, 2ª edição, 2022), publicado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), que reconhece e conceitua as seguintes modalidades de seguro agrícola: custeio, produção, faturamento e paramétrico.
Quanto ao seguro de produção, o MAPA esclarece:
“Seguro de Produção (Produtividade e Preço): o LMI é calculado com base na produtividade garantida para a área a ser segurada multiplicada por um preço estabelecido no momento da contratação para cada unidade a ser produzida. Esse preço utilizado na contratação será o mesmo utilizado no caso de eventual indenização.”
Já sobre o seguro de custeio, o guia define:
“Seguro de Custeio: o LMI é calculado com base no valor do desembolso para o custeio da lavoura segurada. É devida indenização quando a produtividade obtida com a cultura é inferior à produtividade garantida na apólice, comprometendo a capacidade de pagamento do valor do custeio. Atualmente, algumas seguradoras oferecem esta modalidade de seguro com uma proteção ampliada em relação ao valor do financiamento de custeio. O objetivo é amparar outras despesas relacionadas com o ciclo de produção que não estão incluídas na operação de crédito.”
É possível observar que a modalidade “custeio” é, conceitual e tecnicamente, aquela que mais se aproxima da chamada apólice de “custo de produção”, visto que ambas possuem cobertura limitada ao “valor do desembolso para o custeio da lavoura segurada”.
E aqui reside um ponto essencial: em se tratando de crédito rural, a existência de um orçamento analítico, elaborado na fase pré-contratual, é condição indispensável para que o financiamento seja caracterizado de custeio, e, consequentemente, também para que a apólice seja caracterizada como de custeio. Essa exigência decorre da própria lógica técnica do produto vinculado: não há crédito de custeio sem um prévio projeto de custeio.
Portanto, uma apólice que não esteja vinculada a um orçamento técnico prévio e detalhado não pode ser juridicamente enquadrada como apólice de custeio. Nessa hipótese, deve ser tratada como apólice de produtividade, cuja natureza jurídica e operacional é diversa, conforme distinção expressa no próprio guia do MAPA.
A vinculação com o financiamento rural
É amplamente reconhecido no mercado segurador agrícola, e inclusive citado pelo MAPA no Guia de Seguro Rural, que o seguro de custeio está diretamente vinculado a um orçamento técnico ou a uma operação de crédito rural, geralmente lastreado em recursos oficiais. Um exemplo notório são as apólices da Brasilseg, vinculadas aos financiamentos do Banco do Brasil, ou apólices da Tokyo Marine, vinculadas aos financiamentos da Caixa.
Trata-se de uma relação triangular típica entre produtor rural, agente financeiro e seguradora, cujo funcionamento depende da coerência entre o projeto técnico, o crédito concedido e a cobertura securitária contratada.
Para obter o financiamento, o produtor apresenta à instituição financeira um projeto técnico de custeio agrícola, elaborado por profissional habilitado. Com base nesse projeto é liberado o valor do financiamento e contratado, a depender do caso, uma apólice de seguro de custeio, o qual normalmente é vinculada como garantia da operação, nos termos que autoriza o art. 58 da Lei 8.171/91. Neste caso, o LMI da apólice é definido com base no mesmo orçamento técnico, e normalmente corresponde ao mesmo valor financiado.
Esse modelo é inspirado no PROAGRO, cujo foco é justamente a desoneração do financiamento em caso de perdas agrícolas: em caso de perdas, basta ao produtor comprovar a aplicação dos insumos necessários no projeto técnico e a cobertura da indenização irá quitar parcial ou totalmente o crédito concedido.
O equívoco da exigência de comprovação integral dos custos
Nesse ínterim, e talvez com base no entendimento existente do PROAGRO, algumas decisões judiciais vêm exigindo que, nas apólices contratadas na modalidade de cobertura de “custo de produção”, o produtor comprove integralmente a execução do valor dos gastos mencionados na apólice, como condição para a indenização securitária.
Com o devido respeito, esse entendimento não encontra amparo contratual, técnico ou normativo, tampouco se coaduna com a realidade operacional da agricultura.
Primeiro porque muitas dos seguros de “cobertura de custo de produção” existentes no mercado não exigem a apresentação de um projeto de custeio ou um orçamento prévio no momento da contratação. São lançados, na apólice, valores referenciais para cada cidade ou região, como uma espécie de “Tabela FIPE”. Apenas após o sinistro, o produtor tem sido instado a provar que despendeu aquele custo, o que muitas vezes não espelha a realidade.
Segundo, ainda que seja solicitado um projeto de custeio, vale dizer que estes são, por natureza, estimativos. O custo efetivo de uma lavoura pode ser impactado por inúmeros fatores: variações climáticas, técnicas, econômicas, entre outros. Portanto, é inviável uma exigência de correspondência exata entre o orçamento inicial e os gastos realizados.
E, mesmo no crédito rural, muito embora a instituição financeira deva fiscalizar o uso dos recursos, não há exigência de comprovação integral por meio de notas fiscais, conforme dispõe o Manual de Crédito Rural (MCR 2.7). A fiscalização serve apenas à verificação da destinação geral dos recursos, e não à exatidão contábil, centavo a centavo.
Essa lógica deve ser integralmente aplicada no caso das apólices de seguro rural. O que o seguro protege não é o valor efetivamente gasto, mas sim a produtividade mínima necessária à viabilidade financeira da lavoura.
E em terceiro ponto, uma vez que o LMI tenha sido calculado com base em um valor de custo apresentado, é certo supor que também o prêmio pago tenha sido calculado com base naquele LMI, de modo que, sendo maior o custo, maior também é o prêmio pago, e vice-versa.
Assim, não teria lógica exigir, após sinistro, a comprovação dos custos empregados, uma vez que a mensuração do risco para o pagamento do prêmio já levou em conta o valor do LMI, ou seja, o segurado pagou exatamente por aquela cobertura. Neste sentido já decidiu o TJPR:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA. SEGURO AGRÍCOLA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. ALEGAÇÃO DE ILEGITIMIDADE ATIVA E INAPLICABILIDADE DAS DISPOSIÇÕES DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. RECURSO NÃO CONHECIDO NESTES PONTOS. QUESTÕES RESOLVIDAS EM DECISÃO SANEADORA E MANTIDAS EM SEDE DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRECLUSÃO CONSUMATIVA. NULIDADE DA SENTENÇA POR AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. INOCORRÊNCIA. RECUSA DA SEGURADORA FUNDADA NO FATO DE QUE O CUSTO TOTAL DE PRODUÇÃO FOI MENOR DO QUE O EFETIVAMENTE INFORMADO. CLÁUSULA CONTRATUAL QUE DISPÕE QUE O LIMITE MÁXIMO DE INDENIZAÇÃO DA COBERTURA BÁSICA SERÁ O CUSTO TOTAL DE PRODUÇÃO DECLARADO PELO SEGURADO E ACEITO PELA SEGURADORA. CUSTO DE PRODUÇÃO FIXADO POR ESTIMATIVA NO MOMENTO DA CONTRATAÇÃO E ACEITO PELA SEGURADORA. PRÊMIO PAGO COM BASE EM TAL ESTIMATIVA. IMPOSSIBILIDADE DE SUA MODIFICAÇÃO EM MOMENTO POSTERIOR À OCORRÊNCIA DE SINISTRO. PREENCHIMENTO PELA PARTE DE TODOS OS REQUISITOS NECESSÁRIOS À COBERTURA SECURITÁRIA. SECA QUE RESTOU INCONTROVERSA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE QUE TERIA O AUTOR DESCUMPRIDO AS ORIENTAÇÕES TÉCNICAS. INDENIZAÇÃO DEVIDA. SENTENÇA MANTIDA. MAJORAÇÃO DA VERBA HONORÁRIA ADVOCATÍCIA EM GRAU RECURSAL. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJPR – 10ª Câmara Cível – 0001273-72.2022.8.16.0082 – Formosa do Oeste – Rel.: DESEMBARGADOR MARCO ANTONIO ANTONIASSI – J. 05.12.2024)
Neste aspecto, caberia à seguradora apenas a defesa do art. 768 do Código Civil, cabendo-lhe a prova do agravamento intencional do risco do contrato, não a simples inexecução desta ou daquela aplicação de insumo, uma vez que uma lavoura possui condições especialíssimas, que constantemente se alteram no decorrer de sua evolução.
Exemplo disso é a recorrência de aplicação de fungicida no decorrer da safra. Elabora-se um custo prevendo 3 aplicações, porém intempéries climáticas podem levar à uma ou outra aplicação ser totalmente desnecessária, ou inútil.
O mesmo vale para despesas de colheita. É previsto no custo determinado valor para colheita, porém, devido à uma forte seca, não há produção e não haverá colheita, de forma que aquela despesa não será efetuada.
Nestes exemplos, não se pode retirar o custo da aplicação do fungicida ou da colheita da indenização da apólice, posto que, fazendo isto, estar-se-ia modificando toda a base contratual, inclusive em relação ao prêmio pago, e a apólice de seguro não estaria cumprindo sua função social – e constitucional – de proteção da atividade agrária.
Em suma, transformar a apólice de custeio em um simples CONTRATO DE REEMBOLSO descaracteriza sua essência e colide com os arts. 421, 422 e 757 do Código Civil, que consagram a função social do contrato, a boa-fé objetiva e o interesse legítimo do segurado contra riscos predeterminados.
Considerações finais
A chamada apólice de “custo de produção” não constitui modalidade autônoma de seguro rural.
Poderá tratar-se, na prática, de uma variação operacional do seguro de custeio, desde que esteja lastreada em orçamento analítico previamente elaborado.
Por outro lado, caso não haja projeto técnico de custeio, essa apólice não pode ser caracterizada como seguro de custeio, devendo ser reclassificada como seguro de produtividade, cuja lógica de cobertura é distinta (produtividade obtida – produtividade segurada x preço do produto).
É imperioso, portanto, que o Judiciário compreenda essa distinção técnica e jurídica já patente no mercado de seguro: somente existe seguro de custeio quando há financiamento de custeio rural vinculado à apólice ou, ao menos, um prévio projeto de custeio apresentado com a proposta de seguro.
A exigência judicial de comprovação exaustiva dos gastos realizados não encontra respaldo normativo e desvirtua a finalidade econômica do contrato, comprometendo a eficácia do seguro rural como instrumento de política agrícola, previsto no art. 187, V da CF/88 e art. 4º da lei 8.171/91.
Assim, é desejável que a jurisprudência evolua, enfim, no sentido de reconhecer a natureza contratual e econômica da apólice de custeio, em conformidade com os fundamentos legais, técnicos e regulatórios que norteiam a estrutura do crédito e do seguro rural no Brasil.
Tobias Marini de Salles Luz – advogado, sócio-fundador da banca LCB Advogados. Contato:
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