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Alimentação, o proto-direito

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A história celebra os campos de batalha sobre os quais a morte nos atinge, mas não fala dos campos de cereal que nos fazem viver. (Henri Fabre)

O art. 6º da Constituição Federal[1], por força da Emenda Constitucional nº 64/2010, passou a contemplar a alimentação no seleto rol dos direitos sociais.

Desde então, é imperativo que o Estado se preocupe em estabelecer uma política agrícola eficaz para apoiar o setor produtivo primário, dando ao campo os meios necessários para sua incrementação.

Afinal, a não ser que o Estado aja positivamente em favor da agricultura, o aludido direito pode se converter, para sofrimento de muitos, em direito iludido.

Com efeito, ao figurar, como será visto, na base de realização de outros direitos indicados no supramencionado dispositivo constitucional, a alimentação deve ser adjetivada até mesmo de proto-direito, isto é, de direito que vem em primeiro plano, de direito prioritário, de direito de primazia absoluta tendo em conta sua relevância para a vida do homem.

A alimentação na ordem natural

Mesmo que na redação constante da Carta Magna a alimentação, inadvertidamente, figure depois de educação e saúde, portanto, aparecendo num terceiro momento na sua enumeração, na ordem natural das coisas, precede não somente a ambos, mas aos outros direitos ali inscritos, e jamais deverá ser demovida desta posição.

Noutro momento, não fugiu à nossa observação crítica o fato da denominada Constituição Cidadã não ter trazido, em sua redação original, a alimentação como um direito social, bem assim que a correção advinda com a referida Emenda nº 64/2010 não ter se preocupado em colocá-la em primeiro lugar naquele rol.

Assim escrevemos, in verbis:

“Embora a doutrina entenda que a enumeração constante do art. 6º seja meramente exemplificativa, já que em outros dispositivos da Constituição também se encontram direitos fundamentais dos jurisdicionados, mesmo assim é de se reconhecer que o rol se mostra imperfeito por não iniciar sua indicação com o direito mais elementar e que toca à própria existência humana, a saber, o direito à alimentação.”[2]

Pode-se dizer que, do mesmo modo que a linha, através das mãos habilidosas de uma bordadeira, perpassa todos os pontos do tecido para trazer à realidade uma figura digna de ser contemplada, a alimentação, através da ação do Estado, faz o mesmo caminho no tecido social para construir uma nação justa e bem desenvolvida.

Alexandre de Moraes, culto doutrinador, lecionando sobre os direitos sociais, escreve:

Direitos sociais são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal.” [3]

Em face da essencialidade da alimentação no que diz respeito à manutenção da vida e ao pleno desenvolvimento do ser humano, cabe ao Estado, portanto, trazer ao mundo do ser (realidade) o que está previsto no ambiente do dever-ser (norma), valendo-se das ações e dos instrumentos que sejam capazes de atuar proativamente no campo.

Do ônus estatal

Não se pode olvidar que o Estado tem sobre seus ombros o ônus irremovível e intransferível de organizar o abastecimento alimentar, condição necessária para oferecer ao povo, tempestivamente, os bens imprescindíveis à vida.

Para dar efetividade a esse encargo, o Estado não pode prescindir de um setor agrícola suficientemente protegido, fonte primária e insubstituível da alimentação.

Ademais, se a saúde, conforme presente no mesmo art. 6º da Constituição Federal, levou o constituinte a dispor que se trata de direito de todos e dever do Estado garanti-la através de políticas próprias que visem a redução do risco de doenças e de outros agravos (art. 196/CF)[4], o que não dizer da ação estatal em prol da alimentação, a qual age tanto profilática, quanto curativamente, na manutenção e preservação da própria saúde.

Com efeito, um povo que padece sob a tirania da fome ou tem acesso a uma alimentação sem qualidade ou escassa não goza de saúde, desempenha mal seu trabalho, não assimila o conhecimento e se torna um peso para o próprio Estado.

O mesmo raciocínio se aplica à questão da moradia e do lazer, pois nenhum cidadão aproveita bem um e outro sem que o alimento esteja garantido, sempre.

Ricardo Zeledón, com maestria e aguçada percepção, escreve que el derecho a la alimentación es un derecho fundamental. Solo quizá el respirar o el descansar pueda resultar más elemental a la alimentación.[5]

O alimento como causa primária de todos os direitos

Como a alimentação, em quantidade e qualidade apropriadas ao homem, é condição, em regra, de boa saúde, que se mostra importante ao bom aprendizado, o qual, a seu turno, qualifica o homem para o trabalho, parece importante dizer que o Estado tem o dever mais que sagrado de garanti-la a todos, fazendo-o sob o amparo de uma estrutura de produção que responda à altura dos reclamos da população.

Se as considerações supracitadas procedem ou merecem pequenos reparos para se adequar a um ou outro ponto de vista, fato é que o Estado não tem outra alternativa que não seja lançar mão dos instrumentos pertinentes para fomentar o pleno desenvolvimento da produção agropecuária, tendo como objetivo maior a organização do abastecimento alimentar, visando a felicidade da Nação.

Portanto, protestar por um Estado que implemente uma política agrícola assentada em bases estruturais à altura de sua importância é pensar o mínimo para a construção de um País saudável.

A toda evidência, a alimentação deve gozar do status de proto-direito e, então, tratada neste patamar, quer por sua marcante atuação em favor da vida e da dignidade de vida do homem, quer por sua não menos relevante presença na garantia de efetivação de todos os demais direitos sociais contemplados no texto constitucional.

Lutero de Paiva Pereira – Advogado especializado em direito do agronegócio em Maringá (PR). Contato: www.pbadv.com.br / pb@pbadv.com.br


[1] Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.             (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)

[2] Pereira, Lutero de Paiva. Agricultura e Estado, Uma Visão Constitucional. Juruá, 4ª ed. p. 65

[3] (Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional, 5ª Ed., São Paulo: Atlas, 2006, p. 177

[4] Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

[5] Zeledon, Ricardo Zeledon. DERECHO AGRARIO NUEVAS DIMENSIONES. Curitiba: Juruá, 2001, p. 171.

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